Pais heróis, crianças órfãs e abandonadas pelo Estado. Esse é o retrato da vida de milhares de famílias de profissionais de saúde que perderam a vida para a Covid-19, enquanto trabalhavam na linha de frente, tentando salvar a vida de pacientes. Além dos que se foram, existem também milhares de profissionais que resistiram à infecção e conseguiram se recuperar, mas ficaram com sequelas que impedem a volta ao serviço. Somente na área Enfermagem, principal força de trabalho da saúde, já foram contabilizadas 864 mortes decorrentes da Covid-19 até agosto de 2021. Não são apenas números, são 588 mulheres e 276 homens que partiram de forma repentina e inesperada, deixando pais, amigos, planos, sonhos e filhos nesse mundo.
Tanto dependentes e familiares de profissionais da saúde mortos pela Covid-19, quanto trabalhadores da área que ficaram com sequelas que impedem o exercício da profissão, têm direito à indenização, conforme assegura a Lei 14.128, de 26 de março de 2021. Mesmo assim, essas pessoas continuam sem saber o que fazer para ter acesso ao benefício, pois cinco meses após ser publicada, a norma continua sem regulamentação. Afinal, onde o profissional pode ir e que documentos precisa levar para dar entrada na indenização? Qual órgão público é responsável por receber os requerimentos, gerenciar os pedidos e fazer o pagamento das indenizações? Quais são os níveis de incapacidade permanente contemplados pela lei?
Essa é a dúvida do enfermeiro Adriano Christian Martins, de 45 anos, que trabalhava em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional do Gama (HRG), em Brasília. Ele foi infectado em junho de 2020 e desenvolveu a forma grave da doença. Passou 50 dias internado e 20 dias intubado. Após desenvolver insuficiência renal aguda, teve que fazer hemodiálise. “Para piorar, eu tive reação alérgica ao antibiótico. Saí da UTI sem conseguir mexer uma perna. Consegui voltar a andar com o uso de órteses, mas a parte superior dos meus pés continua dormente. Sou especialista em UTI, estou afastado há um ano e não sei se um dia vou conseguir voltar. Não consigo mais correr para socorrer um paciente com parada cardíaca. Não consigo mais ficar 40 minutos em pé. Os médicos não sabem dizer se vou voltar ao normal”, lamenta.
Para responder a essas e outras perguntas, a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) enviou o Requerimento de Informações 1014/2021 ao ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP/PI). O pedido deve ser respondido obrigatoriamente até o final do mês de setembro. “Essas trabalhadoras e trabalhadores são soldados que perderam a vida ou pessoas que conseguiram voltar de uma guerra. Pagar essa indenização é o mínimo que o país pode fazer por elas. O impacto no orçamento da União é insignificante, não há justificativa para essa omissão. Enquanto aguardamos essas informações por parte do governo, crianças, idosos e outras pessoas que dependiam desses trabalhadores estão passando necessidade. É desumano”, afirma a parlamentar, que é co-autora do projeto, ao lado do deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG).
Como um dos parlamentares que ajudaram a elaborar o projeto, o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) lamenta a indefinição por parte do governo e o fato de que, mesmo após mais de 150 dias de publicação da lei, não exista notícia de alguém que tenha conseguido ter acesso à indenização. “Esse texto é resultado de um pedido dos profissionais de Enfermagem e engloba todos os profissionais de saúde, inclusive os que trabalham na limpeza, na segurança e na administração das unidades de saúde. A lei existe e está valendo. Entretanto, eu conheço muitos colegas que perderam a vida ou ficaram com sequelas e não conseguem voltar ao trabalho e nem ter acesso à indenização. Portanto, fico muito indignado com essa insensibilidade. Estão pisando nas pessoas e agindo para atrasar um direito duramente conquistado”, considera Padilha.
Para a procuradora-geral do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Tycianna Monte Alegre, embora ainda exista muita controvérsia sobre a aplicação da Lei 14.128/21, a expressão “na forma do regulamento”, contida no Art. 4º, deixa evidente que, embora esteja em vigor desde a data de sua publicação, a lei ainda precisa de um decreto regulamentador ou da definição de normas pelo Ministério da Economia para ser aplicada. “Como se pode ler, a compensação financeira será concedida após a análise e o deferimento de requerimento por órgão competente. Entretanto, ainda falta a definição de qual é o órgão competente e de todos os outros critérios por parte do Poder Executivo”, frisa.
Enquanto aguardam definição, profissionais incapacitados pela Covid-19 e os cônjuges, dependentes e herdeiros daqueles que faleceram em decorrência da infecção devem se cercar de informações e guardar todos os documentos comprobatórios. “Em caso de falecimento, a certidão de óbito e os documentos que comprovam a causa da morte são fundamentais. Em caso de incapacidade permanente, além de guardar os laudos e exames que comprovem o nexo causal, considero importante registrar a CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho)”, frisa a deputada Fernanda Melchionna.
Judicialização – Após ser aprovada por maioria absoluta na Câmara e no Senado, a Lei 14.128/21 foi vetada pela Presidência da República. Contudo, o veto foi derrubado por unanimidade, sem um voto contra sequer. Insatisfeito, no último dia 23 de agosto, o presidente Jair Bolsonato (Sem partido) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo que a lei seja suspensa e os pedidos de indenização, travados. Caso seja negada a liminar, pede ainda que as indenizações sejam pagas de acordo com a disponibilidade financeira do governo.
A ADIN será relatada pela ministra Cármen Lúcia. “Eu tive uma audiência com a ministra relatora e rebati todos os argumentos do governo, um a um. Eu acredito que o STF vai manter o que determina a lei, pois é o justo. Não há nada que justifique suspender uma norma desta natureza, aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional”, confia a deputada Fernanda Melchionna.
Cooperação nacional – Para o deputado Alexandre Padilha, é o momento de mobilizar todas as instituições para defender os direitos desses trabalhadores. “Conselhos, sindicatos, organizações sociais e partidos políticos precisam atuar juntos, cada um fazendo sua parte para identificar essas pessoas e auxiliá-las na busca desse direito. Muitos ainda nem sabem da existência da lei, ela precisa ser melhor divulgada. A partir de alguns exemplos e dos primeiros processos, poderemos abrir caminhos para todas as outras pessoas que têm direito à indenização”, considera.
A presidente do Cofen, Betânia Santos, acredita que os conselhos podem contribuir com o alcance do direito assegurado pela lei. “Nós não podemos representar os trabalhadores judicialmente, pois nossa personalidade jurídica impede. Entretanto, por meio do Observatório da Enfermagem, podemos fazer uma busca ativa daqueles que foram afetados pela Covid-19 e saber se estão precisando de ajuda dos sindicatos ou da defensoria pública para dar entrada no pedido. Se cada um fizer a sua parte, podemos ter resultados promissores nos próximos meses”, finaliza.
Fonte: Ascom – Cofen